quinta-feira, 3 de março de 2011

Antes morrer de bicicleta

Uma vez eu falei para a Talita, minha guia espiritual em termos de bicicleta, que não dava para dizer que era seguro pedalar na Paulista se a Márcia Prado – ciclista que morreu atropelada na avenida em 2009 – era responsável, sabia as regras de trânsito e usava os equipamentos de segurança quando foi esmagada brutalmente por um ônibus. Ela me respondeu que, no mesmo dia, dois pedestres haviam sido atropelados há poucos quarteirões dali, só que as notícias sobre a Márcia tinham sido muito maiores.
Alguns dias depois da morte de Márcia, ciclistas amigos dela fizeram uma manifestação pedindo segurança no trânsito. Um policial disse que eles estavam atrapalhando o tráfego e que se houvesse uma passeata para cada atropelamento na Paulista, a cidade iria parar para sempre. Fico pensando que era exatamente isso que devia acontecer: a cidade deveria parar a cada atropelamento com morte.
De alguma forma, quando um ciclista morre ele ainda é identificado como uma pessoa que morreu, recebe um nome na matéria que trata de seu atropelamento, os outros ciclistas se sente pessoalmente atingidos e fazem uma homenagem, discutem a banalidade daquela morte. Já a morte do pedestre é citada como causa de engarrafamento.
Hoje mesmo Talita me mandou uma matéria do G1 que achei chocante, embora todo dia matérias iguais sejam publicadas. Ela falava sobre um atropelamento na Paulista. No entanto, o foco da matéria não é o atropelamento em si, o estado da vítima ou que exatamente causou o acidente, mas o fato de que o corpo estendido na pista prejudicou o trânsito. A vítima não tem nem nome e foi levada em estado grave ao hospital. Duvido que amanhã informem se morreu, se ficou aleijada.
Na minha opinião, seria uma questão ética que a morte (ou quase morte) de uma pessoa fosse o centro da matéria, nunca, jamais, um detalhe de tráfego. Até porque engarrafamento em São Paulo é não-notícia. Notícia não é quando o cachorro morde a pessoa, mas quando a pessoa morde o cachorro. Tem engarrafamento em São Paulo todo santo dia, ninguém precisa ler o G1 para saber disso. Ok, também tem atropelamento todo santo dia, mas, se vamos dar essa não-notícia, que ela seja pro lado das pessoas, não dos carros.


Como ninguém se sente pedestre – embora todo mundo seja! – não haverá manifestação alguma, lembrança alguma. Esse apagamento dos detalhes, do nome, virtualiza o problema. Márcia tem um nome. Eu nunca tinha andando de bicicleta na Paulista e já sabia o nome dela, logo, já sabia que se eu morresse ali haveria um precedente. Não saber o nome do pedestre, não sentir nenhuma empatia por ele nos causa uma impressão de conforto, quase como se o ônibus não estivesse virando a cinco centímetros do nosso nariz naquela maldita esquina da Onofre.